É flutuando entre uma sociedade ultra religiosa localizada em Nova York e a melancolia contemporânea da cidade de Berlim, que acompanhamos a trama de Nada Ortodoxa, a nova minissérie original da Netflix. Com um lançamento discreto ao final de Março deste ano, a história inspirada na vida de Deborah Feldman vem ganhando a atenção do público da plataforma. Principalmente agora, que as pessoas estão passando mais tempo em casa por conta do isolamento social e buscando novos ares nos streamings.
Na série, acompanhamos Esther Shapiro (Shira Haas), uma jovem de apenas 19 anos que decide fugir da comunidade ultraortodoxa onde mora para seguir rumo a Berlim. A partir disso, a protagonista começa sua jornada em busca de liberdade e de uma vida sem a pressão das regras de seu núcleo anterior. No entanto, as coisas saem do planejado quando seu marido, Yanky (Amit Rahav), descobre que a esposa está grávida e viaja até Berlim para trazê-la de volta.
Como podemos acompanhar logo no primeiro episódio, a vida de Esther na cidade americana é extremamente restrita. Mesmo morando em uma das cidades mais movimentadas do mundo, a personagem não conhece nada muito além do seu bairro. E apesar de desde nova acreditar que sua missão seria apenas casar para ser uma boa esposa e mãe, a prática mostrou que as coisas não seriam tão simples quanto o esperado.
Após um ano desde o casamento, a família de Yanky começa a questioná-la sobre ainda não terem filhos – uma das principais bases para a comunidade. Com isso, as consequências do casamento arranjado começam a se tornar problemáticas, gerando uma crise no relacionamento e trazendo à tona outros conflitos internos da protagonista, adormecidos até então. Atrelando isso aos inúmeros rituais, regras e a inevitável falta de afinidade do casal, Esther encontra-se sobrecarregada.
No caso de Esty, ela precisava fugir para conseguir encontrar sua própria identidade. Embora a personagem tivesse um grande apreço e respeito à sua cultura e aos seus antepassados, ela não se via dentro daquele padrão de vida. Logo em seu primeiro encontro com Yanky, ela afirma que não é uma garota comum. E não é mesmo. E uma das características mais bonitas da narrativa, é que, para demonstrar isso, ela não renega suas origens por completo, mas as equilibra na realidade de seu novo mundo.
Mundo este que explora a vida de uma mulher judia em um dos principais palcos do Holocausto. O legado que Berlim carrega em cada esquina é muito bem retratado no olhar de cada personagem do núcleo nova-iorquino da série. Mas o momento em que Esty, recém chegada na cidade, mergulha no lago que foi um dos muitos cenários da guerra contra o seu povo é, de longe, uma das cenas mais emblemáticas da série.
Além do simbolismo histórico, Esther também explora a cidade para estabelecer novas amizades e despertar seu amor pela arte. Segundo abordado pela própria personagem, na visão de sua comunidade em Nova York, uma mulher se expressar artisticamente era visto como algo indecente. Portanto, esta era uma característica da personagem que por muito tempo se mantinha em segredo, sendo conhecida apenas por sua professora de piano e por sua avó. O lado artístico da personagem é externalizado apenas quando Esty se aproxima do grupo de músicos de uma escola de artes na cidade alemã.
Um detalhe interessante sobre Nada Ortodoxa, é que a série pode ser vista através de diferentes perspectivas. Você pode assistir apenas como um mero observador da vida da personagem, ou, dentro de um certo contexto, se colocar no lugar de Esty. Isso porque, nas devidas proporções, todos nós temos o desejo de fugir de alguma coisa.
Junte tudo isso a uma fotografia bem trabalhada e um elenco bem dirigido, e temos uma ótima descoberta da Netflix. O roteiro, por sua vez, é um pouco arrastado em diversos momentos. Uma das cenas, onde o grupo vai para uma festa e a protagonista entra pela primeira vez em uma boate, por exemplo, tem um conceito estético muito interessante, mas a condução não precisava ser tão demorada.
A fotografia e a escolha das cores predominantes da cena representam quase um rito de passagem para a protagonista. E é a partir daquele momento em que a vida dela realmente começa a mudar. Ela se permite chamar a atenção – coisa que nem pode ser cogitada na comunidade onde morava -, se envolver intimamente com um de seus novos amigos e, mais importante, sentir-se livre.
Os conflitos que seguem com o encontro de Esther e seu passado nos fazem torcer pela protagonista a todo custo. A trajetória até Berlim, os dilemas com a mãe e os choques de realidade vêm como um baque para alguém recém-saído de uma bolha ultra conservadora. E lidar com tudo isso enquanto Yanky e seu primo, Moishe, a perseguem pela cidade acaba tornando as coisas ainda mais complicadas. É nesse momento em que a série ganha um ritmo interessante.
A narrativa cresce a partir dos dois episódios finais e nos arrebata na vontade por mais. A construção da montagem intercalando o eixo Nova York – Berlim também é um bônus. O roteiro só nos permite ver o que é relevante para aquele ponto da história. E, se necessário, dá continuidade em outro momento. Isso é positivo, se considerarmos que a premissa é bem extensa para ser desenvolvida apenas em quatro capítulos. Dessa forma, a série não joga um amontoado de informações que não serão trabalhadas depois.
Por outro lado, ainda assim algumas coisas ficam em aberto. A pena é que a trama foi bem amarrada nos conflitos principais, portanto não há necessidade de estendê-la por mais uma temporada. Em contrapartida, seria interessante acompanhar melhor alguns pontos que não foram tão bem explorados.
Contudo, já que a história é apenas inspirada no livro de Deborah Feldman, intitulado Unorthodox: The Scandalous Rejection of My Hasidic Roots (Não Ortodoxa: A Rejeição Escandalosa das Minhas Raízes Hassídicas, em tradução livre) e não necessariamente uma biografia, a julgar pela ótima recepção da série, não seria uma grande surpresa um anúncio de renovação para outra temporada.
De todo modo, os quatro capítulos já são mais do que suficientes para fazer o público embarcar de vez na história da fuga de Esther Shapiro. A minissérie nos dá uma boa visão do paralelo entre religião e patriarcado através de uma personagem forte e emblemática, e essa evolução é muito interessante de se acompanhar.
Com uma narrativa leve e que prende a atenção do espectador, o final soa como um respiro de alívio, como se quisesse dizer que vai ficar tudo bem. E em tempos como estes, de tantas incertezas, isso é tudo o que precisamos ouvir.