Nos últimos anos, algumas obras literárias que apostaram no suspense como trama da narrativa e em protagonistas com intenso adensamento psicológico têm ganhado intenso destaque no mercado editorial. Ilustro tal afirmação com duas obras: Pequenas grandes mentiras (Liane Moriarty, Intrínseca: 2015) e Objetos cortantes (Gillian Flynn, Intrínseca: 2015). Ambas apostaram nos dois aspectos citados e contam com protagonistas femininas nos papeis principais. Essas obras se enquadram no gênero thriller, no qual o suspense, a tensão e a excitação são propostos ao leitor durante seu processo de leitura.
Essa receita para cativar os leitores não se restringiu ao mercado editorial, fazendo com que essas obras se transformassem em série, ambas pelas mãos da HBO. Na mesma onda, surfa Pequenos incêndios por toda parte (Celeste Ng, Intrínseca: 2018), obra que ganhou recente adaptação pela plataforma HULU e apresenta um misto de polêmicas veladas e abertas entre duas protagonistas de classe e etnia distintas.
Na cidade planejada de Shaker Hights, os moradores atuam para que a organização do lugar em que vivem se estenda para além da estrutura das ruas e prédios. A grama deve ser cortada em uma altura específica, os lixeiros pegam o lixo no fundo das casas e não na frente e há uma série de outras regras que, uma vez não obedecidas, podem resultar em cartas zangadas dos moradores ou multa por parte da prefeitura. Nessa utopia urbana mora Elena Richardson com seu marido e seus três filhos. A mulher vive uma vida normal e perfeita dividida entre o trabalho, o cuidado com os filhos e a constante atenção para os amigos e moradores da cidade. O cotidiano de Elena é alterado quando um certo dia percebe em um carro duas mulheres dormindo, Mia Warren e sua filha Pearl. Compadecida da situação das mulheres, Elena oferece um de seus apartamentos para que as duas se instalem por um preço abaixo do mercado.
Essa relação que aparenta ser um ato de bondade começa a se transformar em tensão quando o passado de Mia e suas singularidades enquanto mulher negra começam a se chocar com a utopia de Shaker Hights. Não demora para que ambas as protagonistas se percebam em meio a um pesado embate e rodeadas por pequenos incêndios por toda parte.
A narrativa da obra de Celeste Ng está repleta de polêmicas, algumas veladas e outras abertas. O que considero ser o maior efeito de estilo da trama é justamente como a autora conseguiu narrar uma situação de tensão racial sem que fique, de forma clara e evidente, em diversos momentos, que é isso que está acontecendo. Ao longo da leitura, o leitor não percebe de imediato que Mia e sua filha são negras e tampouco algumas questões decorrentes desse fator étnico. É só ao longo da narrativa que essas características físicas vão sendo dadas de forma sutil e outras situações vão acontecendo na tentativa de evidenciar os muros que separam Mia e Pearl do resto da população de Shaker Hights.
Nessa perspectiva, o leitor pode ser induzido em diversos momentos a acreditar que o ponto central da história são narrativas paralelas em que o embate ganha mais força e acontece com outras personagens ligadas a Mia e Elena. Mas a verdade é que o grande plote explorado pela narrativa é o olhar estranho da mulher branca para a negra que, evidentemente, precisa de ajuda. Em um misto de piedade e racismo, leitor e personagens vão descobrindo como a tensão étnica aparece quase sempre de forma velada no meio social. E isso faz com que a cada página, o livro vá crescendo e dando força a um movimento de combustão. A coisa vai explodir, uma hora ou outra, e o leitor percebe isso ao decorrer da leitura.
Talvez, o grande problema da narrativa ao ser adaptada para a televisão foi justamente ter matado essas polêmicas. Obviamente, em uma série de TV não tem como manter em sigilo a cor das personagens e se torna mais difícil manter nas entrelinhas o clima de desafeto entre as protagonistas, uma vez que não estamos mais com linguagem apenas verbal. No entanto, a série, em seus cinco episódios já lançados, parece ter aberto mão do que é, na minha opinião, o mais precioso na história de Celeste Ng. Mia, que parece invisível em boa parte da narrativa literária, se torna curiosa demais, raivosa e não se prende ao velado, entrando em constante embate com Elena. A tensão entre as duas, que só entra em combustão muito depois, já demonstra fumaça desde o primeiro episódio. Há um ritmo de ação e suspense também? Sim. Mas nem de longe o estilo da série se aproxima ao suspense da trama literária. Óbvio que como gêneros distintos algumas similaridades não podem ser concretizadas, mas há uma série de decisões de roteiro que sufocam o as fagulhas de tensão do texto.
Por fim, devo dizer que o desfecho da narrativa me deixou um pouco decepcionado. Logo no início do livro – e também da série – o leitor já sabe que a casa de Elena é incendiada. O que poderia ser um desfecho com uma explicação incrível e subversões foi só uma conclusão previsível e sem muito desenvolvimento. Foi inevitável a sensação de nadar para morrer na praia. Apesar disso, a obra segue uma linha de suspense sensacional e trata de questões já tão discutidas na literatura e em outras ferramentas artísticas, mas de uma forma muito singular que oxigena a representação dos embates enfrentados por pessoas negras e pobres.
É, sem dúvida, uma leitura muito válida nesse período de quarentena, bem como a série que, quem sabe, apesar de ter matado uma parte fundamental da narrativa literária, não nos dá o verdadeiro incêndio que era de se esperar no final da narrativa?