É fato que a internet, salvo seus problemas, trouxe a possibilidade de nos aproximar da cultura de outros países com uma facilidade absurda, coisa impensável nos longínquos anos 90, época em que o que consumiamos de entretenimento internacional era mediado pelas televisões, pelas distribuidoras de filmes, rádios e afins. Com a facilitação da informação e a recém-inaugurada era do streaming, não há mais barreiras nem intermediários entre produtos e público, de modo que, aos poucos, vamos conhecendo e nos familiarizando com cinematografias (como outras artes) de lugares pouco antes conhecidos e muitas vezes nos surpreendemos com o que vemos. Há vida fora do eixo americano e europeu, muita vida e muita coisa excepcional.
Isso nos leva a Parasita (Parasite, 2019). O filme, aclamado pela crítica global, atingiu lugares nunca antes desbravados por filmes estrangeiros. Vindo diretamente da Coreia do Sul, ganhou o reconhecimento do Globo de Ouro como melhor filme estrangeiro, do Screen Actors Guild como melhor elenco, do Sindicato de Montadores de Hollywood como melhor edição (pela primeira vez um filme não americano leva este prêmio), e se tornou o maior vencedor do Oscar 2020 nas categorias de Direção, Roteiro Original, Filme Internacional e Melhor Filme, fato inédito e histórico. Justificável? Absolutamente.
A história segue uma pobre família coreana. Uma pobre família coreana e golpista, que utiliza de métodos pouco ortodoxos para se infiltrar na casa de uma família rica e experimentam uma vida diferente e questionam suas impossibilidades de tê-la. Sim, trata-se de uma exploração da luta de classes porém longe de ser panfletaria. Eles são pobres, mas não tão honestos assim, ao ponto de tramar demissões, conspirar, enganar e abusar da casa dos patrões milionários, Estes, por sua vez, não são necessariamente cruéis, mas revelam uma natureza intrínseca de preconceito que se estabelece muitas vezes com uma plástica aparentemente agradável, de modo que é possível se pegar não torcendo por ninguém e torcendo por todos ao mesmo tempo, conforme a história avança. Não bastasse, as surpresas que o filme entrega são equilibradas e nos momentos precisos, exatamente quando começa a suspeita de que já se entendeu tudo e a crença de que se está vendo algo banal. Há esconderijos surpreendentes na trama, digna do seu nome.
A direção de Bong Joon-ho é segura e mostra seu total domínio sobre o roteiro que divide com Han Jin-won, roteiro que passeia entre o drama e a comédia, entre a ação e o suspense e um flerte com o terror sem demarcar territórios. Não dá para dizer quando um começa e o outro termina, dada a fluidez com que as sequências se colocam. Existe um cuidado muito grande de propor ao elenco subsídios para a construção dos seus personagens e eles retribuem isso de maneira brilhante, com genialidade no comum, segurando muitas vezes cargas absurdamente dramáticas e relevantes em apenas um movimento, como o pai da família que demonstra o quanto se sente humilhado pelo seu patrão sem emitir nenhuma palavra.
Parasita se tornou um ponto fora da curva e um nome que vai ficar marcado por fazer o mundo voltar os olhos para o oriente, para a Coreia do Sul, além da sua música ou das suas peculiaridades. Não se assiste ao filme como um zoológico de cultura estranha a ser consumida, mas uma experiência humana, visceral, capaz de criar uma conexão real com o espectador. Assim também outras produções, mesmos os mais improváveis, como “Invasão Zumbi” (Train to Busan, 2018) – um filme sobre uma epidemia zumbi que não reinventa a roda, mas demonstra que outras cinematografias podem ousar sem querer ser uma Hollywood, de um jeito próprio, emocional, realmente baseado em conflitos e no querer fazer uma história e não querer fazer um efeito.
Fato igualmente experienciado no filme-catástrofe “Pandora”, de 2016 ou no drama psicológico “Em Chamas”, de 2019 e tantos outros que ainda são desconhecidos que aos poucos vão sendo trazidos à relevância que merecem, ressaltando o desejo e a profecia das palavras do diretor de Parasita ao discursar no Globo de Ouro em sua própria língua: “quando superarmos as barreiras de legenda, vocês conhecerão muitos filmes incríveis”. Não poderia concordar mais.
Escrito por: Thiago Rodrigues