Publicado originalmente em 2007 nos Estados Unidos, Me chame pelo seu nome (Intrínseca, 2018) é a primeira obra de ficção do autor ítalo-egípcio-americano André Aciman. Na trama, o leitor é apresentado a Elio, um adolescente italiano de 17 anos que vive com sua mãe e seu pai. Este, enquanto professor e pesquisador, costuma receber alunos em sua casa durante o verão. No ano em que a narrativa se passa, o aluno que vem para a casa da família é Oliver, um americano de 24 anos. Não demora para que Elio comece a desenvolver certa afeição e desejo pelo visitante, o que os leva a um envolvimento romântico profundo e faminto, ainda que só dure por algumas semanas de férias.
A obra foi efetivamente popularizada após a adaptação para o cinema em 2017 – nesta coluna, focaremos nosso olhar no texto literário. Após essa popularização, por um lado muito se aclamou a narrativa por tratar o amor de uma forma tão delicada e poética, porém, por outro lado, muito se questionou a representação feita da relação dos jovens, seja porque o autor do livro e os atores não são gays, seja porque acusaram a narrativa de não representar a realidade da maioria dos sujeitos LGBTQIA+, além de uma suposta romantização da pedofilia. Além disso, muitos disseram que o livro/filme é simplesmente entediante e não merecia o destaque grandioso que recebeu em premiações como o Oscar e o Globo de Ouro. Essas razões fizeram com que muitos cancelassem a história de verão de Elio e Oliver e diversos debates aconteceram nas redes sociais. Mas afinal, quem tem razão nessa história?
Não é novidade para ninguém que as pessoas da comunidade LGBTQIA+ foram invisibilidados socialmente ao longo da história. Apesar de pequenos momentos de maior liberdade em conjunturas singulares e em sociedades bem específicas, esses indivíduos nunca gozaram de equidade em relação aos heterossexuais. O resultado disso é uma homofobia (e transfobia) estrutural que afeta as sociedades e faz com que esses sujeitos precisem se esconder e se camuflar para garantir a própria sobrevivência. Nesse panorama, esse preconceito chega nas artes fazendo com que muitas dessas identidades sexuais fora da norma não ganhem representação na literatura, no cinema e em outras formas de manifestações.
Essa trajetória evidencia a necessidade de dar voz a essas identidades, tanto nos movimentos sociais em que estes podem reivindicar seus direitos a partir do local de fala de quem sofre por isso, quanto nas produções artísticas, em que podem construir narrativas que representam realidades efetivamente reais e com menos estereótipos. Isso justifica a necessidade de deixar que pessoas LGBTQIA+ construam suas próprias narrativas, afinal, esse direito lhes foi negado por muito tempo, restando a indivíduos héteros definirem, na vida e na arte, quem essas pessoas são, o que pensam, como agem e, assim, muitas vezes, dando origem a estereótipos.
Assim, é preciso problematizar essa questão dos estereótipos. A escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie tem um famoso discursos chamado “o perigo de uma história única”. Nele, a autora aborda o problema de só se conhecer um lado da narrativa acerca de uma pessoa, grupo social ou país. Para ela, os estereótipos reduzem os sujeitos e grupos a uma única possibilidade, as tornando rasas e sem muito significado. Nessa perspectiva, muitas das produções que envolvem o público LGBTQIA+ caíram nesse paradigma. Exemplos disso são representações do gay risível, do gay vilanesco e, por fim, do gay sofredor. Essas representações, desde as muitas vezes problemáticas até as realmente constantes, permitiram que ao longo do tempo outras representações ganhassem espaço, fazendo com que outras performances fossem possíveis nesses espaços.
É então que surge algo importante de se pensar nesse momento. Na sua parceria com o cantor Emicida, a drag Pablo Vittar canta sobre a possibilidade de dizer não as cicatrizes e não resumir sua história a sobrevivência. Ora, Me chame pelo seu nome não tenta exatamente oxigenar as tramas sobre romance entre dois homens ao focar em questões mais profundas emocionalmente tantas vezes ignoradas pelos fardos de simplesmente amar alguém do mesmo sexo? Será que a crítica de muitas pessoas ao dizer que a trama não as representa seria justamente a perda da capacidade de se enxergar para além das cicatrizes?
Talvez o que tenha gerado o argumento de que a história de André Aciman não representa a realidade da maioria dos gays e bissexuais seja a falta de percepção do que efetivamente a história representa. Me chame pelo seu nome é um livro sobre o amor e o desejo. Simples assim. Sabe os filmes romântico com casais héteros em que ser hétero não é uma questão, afinal, eles já são tidos como normais?. Pois é! A trama de Elio e Oliver não vereda pela intenção de representar os dilemas de um casal gay, mas simplesmente como pode surgir, inesperadamente, a atração por alguém do mesmo sexo, ainda que até então esses sujeitos se considerassem héteros.
“Você é muito inteligente para não saber o quão raro, o quão especial, foi o que vocês dois tiveram.”
O livro aborda o amor e, sobretudo, como tem sido difícil se permitir amar em uma sociedade que cada vez mais teme a dor e não a compreende como parte fundamental para a efetivação de uma relação. De um lado um jovem em plena combustão de hormônios, do outro, um jovem mais maduro que descobre ainda não ter conhecimento total sobre si. Juntos, descobrem a potencialidade de um amor de verão que, como o próprio nome sugere, dura apenas um verão, mas ainda assim, foi amor. A idade dos personagens se justifica a partir desse panorama. Não há como defender uma romantização de pedofilia porque, legalmente, isso não se sustenta dada a idade dos personagens e, além disso, como falar de romantização da relação entre adultos e adolescentes se em momento algum Oliver demonstra se interessar por Elio tendo isso como vetor absoluto? Talvez essa questão tenha sido abordada no filme por Elio parecer muito novo, mas sequer o ator que o interpreta é menor de idade. A diferença de idade é o elemento chave para, simplesmente, evidenciar que nunca é tarde ou cedo demais para o desabrochar de desejos até então desconhecidos e de como é imprevisível quem pode gerar essa reação.
LEIA TAMBÉM:
– RESENHA | Quinze dias – Vitor Martins
Mas mesmo que a trama se debruce sobre o amor, não é problemático que um hétero escreva sobre um amor entre dois homens? A resposta para essa questão é muito complexa. Por um lado, é esperado que um sujeito que vivenciou experiências por ser gay, por exemplo, vá conseguir representar melhor isso em uma narrativa literária. Por outro, não se pode garantir isso, afinal, transformar a vivência em literatura não exige só experiência de vida, mas habilidade de escrita. Em um movimento social, é exatamente quem sofre com determinadas violências sociais que vai ter mais consistência de fala naquela organização. Mas quando o assunto é arte, a vivência é uma parte essencial, mas não é tudo. Um exemplo disso é Mia Couto, autor moçambicano que, mesmo branco, passou a vida em contato com a cultura negra do seu país e tem romances incríveis sobre a identidade dos sujeitos negros de seu país. Cancelar sua obra pelo simples fato dele ser branco seria, no mínimo, precipitado. Da mesma forma, André Aciman apesar de hétero, casado e com filhos, é defensor da ideia de que as pessoas possuem uma sexualidade fluida, que apenas é contida por conta dos valores morais da sociedade. Ele mesmo se inclui nesse paradigma. Talvez seja exatamente essa a ideia que percorre Me chame pelo seu nome, os limites que impomos a nossa sexualidade e que, por vezes, nosso desejo é responsável por alargar ou derrubar.
Em seu lugar, eu diria: se há uma dor, cuide dela com carinho. E, se há uma chama, não a apague. Não seja brutal com ela. Arrancamos tanta coisa de nós mesmos para nos curarmos mais rapidamente das coisas que aos 30 anos já estamos falidos e temos menos a oferecer cada vez que começamos com uma pessoa nova. Mas insensibilizar-se para evitar qualquer dor – que desperdício!
Por fim, é preciso mencionar, ainda, que o livro e, consequentemente, o filme, foram apontados como chatos. Isso decorre exatamente do ritmo. É verão na Itália. Os personagens vivem férias e o ritmo segue exatamente essa linha preguiçosa e descontraída, o que realmente deixa a narrativa mais lenta, sem grandes acontecimentos constantes e permite um mergulho maior na consciência do protagonista. A quebra de um ritmo acelerado que torna a leitura fluida não me parece um erro de escrita, mas um estilo do próprio autor. Ora, a história trata de desejo, amor e um período de férias. A intenção de Aciman é justamente mergulhar na consciência de Elio e mostrar como essa relação vai se firmando sentimentalmente ao longo do verão. Nem sempre os livros e filmes terão um ritmo fluido. Talvez a questão aqui seja muito mais de perceber que há inúmeras formas de contar história, e isso serve tanto para justificar o ritmo da trama como a forma que o casal é apresentado.
Me chame pelo seu nome é um livro sobre amor antes de ser um livro sobre representatividade LGBTQIA+ (o que sequer é sua intenção), e talvez seja esse seu grande trunfo, ao mostrar novas formas de representar sujeitos gays ou bissexuais na literatura e no cinema. Ao invés de cancelamento, a obra pode ser o ponto de partida para o debate, para se questionar o porquê ainda faltam tantos autores assumidamente gays no mercado editorial, o porquê de ainda ser um problema no cinema atores gays interpretarem determinados papeis e não serem bem-vindos, muitas vezes, para papeis que as pessoas são gays, o porquê de muitas obras sobre representatividade LGBTQIA+ focarem tanto as dores e quase nunca o que há além dela e muitas outras questões que, ao serem debatidas, podem corroer as histórias únicas que cerceiam os sujeitos gays. Ainda não se há equidade entre as diferenças sexuais sequer dentro do grupo, quem dirá para além dele, mas talvez o caminho para construir isso seja a partir do diálogo mais aberto entre sujeitos. A empatia é papel fundamental para esse processo e, por que não, usar a literatura para isso?
Conheça o livro desta matéria:
Título:
Me chame pelo seu nome
Título Original: Call me by your name
Autor(a): André Aciman
Páginas: 288
Editora: Intrínseca
ISBN: 978-85-510-0273-5
Valor Médio: R$ 49,90